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terça-feira, 18 de junho de 2013

Os Professores segundo MST

Não sendo esse o objectivo nem a linha editorial deste blogue, o NIMBUS publica na íntegra um artigo publicado no jornal Expresso sobre os Professores por se rever absolutamente nas palavras de Miguel Sousa Tavares.

"A minha entrada no ensino foi feita numa pequeníssima aldeia rural do norte. Éramos uns 80 alunos, da 1ª à 4ª classe, todos juntos na mesma e única sala de aula da escola - que não me lembro se tinha ou não casas-de-banho, mas sei que não tinha qualquer espécie de aquecimento contra o frio granítico, de Novembro a Março, que nos colava às carteiras duplas, petrificados como estalactites. Lembro-me de que o "recreio" era apenas um pequeno espaço plano, enlameado no Inverno, e onde jogávamos futebol com uma bola feita de meias velhas e balizas marcadas com pedras. A escola não tinha um vigilante, um porteiro, uma secretária administrativa. Ninguém mais do que a D. Constança, a professora que, sozinha, desempenhava todas essas tarefas e ainda ensinava os rios do Ultramar aos da 4ª classe, a história pátria aos da 3ª, as fracções aos da 2ª, e as primeiras letras aos da 1ª. Ela, sozinha, constituía todo o pessoal daquilo a que agora se chama o 1º ciclo. Se porventura, adoecesse, ou se na aldeia houvesse, que não havia, um médico disposto a passar-lhe uma baixa psicológica ou outra qualquer quando não lhe apetecesse ir trabalhar, as 80 crianças da aldeia em idade escolar ficariam sem escola. Mas ela não falhou um único dia em todo o ano lectivo e eu saí de lá a saber escrever e para sempre apaixonado pela leitura. Devo-lhe isso eternamente.

Nesse tempo, não havia Parque Escolar, não havia pequenos-almoços na escola (que boa falta faziam!), não havia aquecimento nas salas, não havia o recorde de Portugal e da Europa de baixas profissionais entre os professores, não havia telemóveis nem iPads com os alunos, não havia "Magalhães" ao serviço dos meninos, mas sim lousas e giz, os professores não faziam greves porque estavam "desmotivados" ou "deprimidos" e a noção de "horário zero" seria levada à conta de brincadeira. Era assim a vida.

Não vou (notem: não vou) sustentar que assim é que estava bem. Limito-me a dizer que tudo é relativo e que nada do que temos por adquirido, excepto a morte, o foi sempre ou o será para sempre. E sei que na Finlândia - o país considerado modelo no ensino básico e secundário pela OCDE - os professores trabalham mais horas do que aqui, não faltam às aulas e ganham proporcionalmente menos. Com resultados substancialmente melhores, do único ponto de vista que interessa aos pais e aos contribuintes: o desempenho escolar dos alunos.

Só uma classe que recusou, como ultraje, a possibilidade de ser avaliada para efeitos de progressão profissional - isto é, uma classe onde os medíocres reivindicaram o direito constitucional de ganharem o mesmo que os competentes - é que se pode permitir a irresponsabilidade e a leviandade de decretar uma greve aos exames nacionais. Nisso, são professores exemplares: transmitem aos alunos o seu próprio exemplo, o exemplo de quem acha que os exames, as avaliações, são um incómodo para a paz de um sistema assente na desresponsabilização, na nivelação de todos por baixo, na ausência de estímulo ao mérito e ao esforço individual.

Mas a greve dos professores vai muito para lá deles: reflecte o estado de espírito de uma parte do país que não entendeu ou não quer entender o que lhe aconteceu. Deixem-me, então recordar: Portugal faliu. O Portugal das baixas psicológicas, dos direitos adquiridos para sempre, das falcatruas fiscais, das reformas antecipadas, dos subsídios para tudo e mais alguma coisa, dos salários iguais para os que trabalham e os que preguiçam, faliu. Faliu: não é mais sustentável. Podemos discutir, discordar, opormo-nos às condições do resgate que nos foi imposto e à sua gestão por parte deste Governo: eu também o faço e veementemente. Mas não podemos, se formos sérios, esquecer o essencial: se fomos resgatados, é porque fomos à falência; e, se fomos à falência, é porque não produzimos riqueza que possa sustentar o modo de vida a que nos habituámos. Se alguém conhece uma alternativa mágica, em que se possa ter professores sem crianças, auto-estradas sem carros, reformas sem dinheiro para as pagar, acumulando dívida a 6, 7 ou 8% de juros para a geração seguinte pagar, que o diga. Caso contrário, tenham pudor: não se fazem greves porque se acaba com os horários zero, porque se estabelece um horário semanal (e ficcional) de 40 horas de trabalho ou porque o Estado não pode sustentar o mesmo número de professores, se os portugueses não fazem filhos.

Por mais que respeite o direito à greve, causa-me uma sensação desagradável ver dirigentes sindicais, dos professores e não só, regozijarem-se porque ninguém foi trabalhar. Ver um sindicalismo de bota-abaixo constante, onde qualquer greve, qualquer manifestação, é muito mais valorizada e procurada do que qualquer acordo e qualquer negociação - como se, por cada português com vontade de trabalhar, houvesse outro cujo trabalho consiste em dissuadi-lo desse vício. Assim como me causa impressão, no estado em que o país está, saber que quase 200.000 trabalhadores pediram a reforma antecipada em 2012, mesmo perdendo dinheiro, e apesar de se queixarem da crise e dos constantes cortes nas pensões. Porque a mensagem deles é clara: "Eu, para já, mesmo perdendo dinheiro, safo-me. Os otários que continuarem a trabalhar e que se vierem a reformar mais tarde, em piores condições, é que lixam!" É o retrato de um país que parece ter perdido qualquer noção de destino colectivo: há um milhão de portugueses sem trabalho e grande parte dos que o têm, aparentemente, só desejam deixar de trabalhar. Será assim que nos livraremos da troika?

As coisas chegaram a um ponto de anormalidade tal, que, quando o ministro da Educação, no exercício do seu mais elementar dever - que é o de defender os direitos dos alunos contra a greve dos professores - convoca todos eles para vigiar os exames, aqui d'El Rey na imprensa bem-pensante que se trata de sabotar o legítimo direito à greve. Ou seja: que haja professores (que os há, felizmente!) dispostos a permitir que os alunos tenham exames é uma violação ilegítima do direito dos outros a que eles não tenham exames. Di-lo o dr. Garcia Pereira, o advogado dos trabalhadores e do dr. Jardim, infalível defensor da classe operária, e o mesmo que, no final do meu tempo de estudante, na Faculdade de Direito de Lisboa, invocando os ensinamentos do grande camarada Mao, decretava greve aos "exames burgueses" - que o fizeram advogado.

Não contesto que as greves, por natureza, causem incómodos a outrem - ou não fariam sentido. Mas há limites para tudo. Limites de brio profissional: um cirurgião não resolve entrar em grave quando recebe um doente já anestesiado pronto para a operação; um controlador aéreo não entra em greve quando tem um avião a fazer-se à pista; um bombeiro não entra em greve quando há um incêndio para apagar. Eu sei que isto que agora escrevo vai circular nos blogues dos professores, vai ser adulterado, deturpado, montado conforme dê mais jeito: já o fizeram no passado, inventando coisas que eu nunca disse, e só custa da primeira vez. Paciência, é isto que eu penso: esta greve dos professores aos exames, por muitas razões que possam ter, é inadmissível."

Miguel Sousa Tavares

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A menina que não foi mulher

A primeira edição de 'O Diário de Anne Frank' data de 1947. Trata-se de uma obra ímpar que não espelha a tenra idade da sua autora, revelando, pelo contrário, a escrita madura e amargurada mas ao mesmo tempo viva de esperança.
 
A 12 de Junho de 1929, há precisamente 84 anos, nascia em Frankfurt uma menina, filha de Otto Frank e de Edith Frank-Hollander, no seio de uma família de judeus liberal que não cumpria todos os rituais, costumes e tradições judaicas.
 
Em 1933, o partido nazi de Adolf Hitler venceu as eleições municipais nesta cidade alemã. Em pleno dia de eleições, as manifestações antissemitas levaram a que a família Frank, composta por Otto, Edith, Anne e a filha mais velha do casal Margot, abandonasse de imediato a cidade rumo a Amesterdão onde Otto se estabeleceu como sócio da Opekta, uma empresa industrial situada junto a um dos muitos canais daquela cidade. Os Frank foram apenas 4 dos 300.000 alemães que se viram forçados a fugir da Alemanha entre 1933 e 1939.
 
Anne Marie Frank, foi matriculada numa escola de Amesterdão em Fevereiro de 1934 e desde logo revelou uma inigualável habilidade para a leitura e para a escrita. Anne, escrevia compulsivamente mas nunca deixou que os outros lessem os seus testemunhos.
 
Em Maio de 1940, a Alemanha nazi invade a Holanda e chega à cidade que havia acolhido a família Frank. Com as tropas e a ocupação chegam também a perseguição aos judeus e as leis discriminatórias e restritivas: De acordo com o novo quadro legal imposto, Anne Frank foi obrigada a deixar os estudos e o seu pai a vender a sua empresa.
 
Apesar de tudo, Anne foi sempre uma criança feliz e extrovertida e o dia do seu 13º aniversário, em 1942, acabou por ser um dos dias mais marcantes da história que eternizou a sua experiência: o pai ofereceu-lhe um caderno com uma estampa xadrez em vermelho e verde e com um pequeno cadeado na parte da frente que ela decidiu imediatamente utilizar como diário. Foi neste diário que passou a registar não apenas os aspectos da sua vida mundana, mas também uma abrangência extraordinária de assuntos relativos à ocupação e às leis impostas aos judeus.
 
Praticamente um mês depois, A família optou por simular uma fuga para a Suiça e por se transferir para um anexo nas traseiras e no sótão da fábrica onde passou a viver reclusa. O Achterhuis  ou anexo secreto era um espaço de três andares, com entrada a partir de um patamar acima dos escritórios da Opekta. Duas salas pequenas, com uma pequena casa de banho contígua ficavam no primeiro nível, acima de um maior espaço aberto, com uma pequena sala ao lado. A partir desta sala menor, uma escada levava ao sótão. A porta para o Achterhuis foi, posteriormente, coberta por uma estante de livros para garantir que ele permanecesse oculto. O edifício principal, situado a um quarteirão da Westerkerk , era o tipo de edifício típico dos bairros ocidentais de Amesterdão.
 
Victor Kugler, Johannes Kleiman, Miep Gies e Bep Voskuijl, zelosos funcionários da Opekta e os únicos que sabiam dos moradores escondidos, foram abastecendo os Frank de víveres e de outros produtos essencias para se manterem vivos e informados sobre a situação sem terem necessidade de sair do anexo. Otto continuou a dirigir a fábrica dentro do anexo onde se alojou com a sua família e onde mais tarde acolheu uma outra - os van Pels.
 
A 4 de Agosto de 1944 e após uma ardilosa denúncia cujo autor ainda hoje se desconhece, a polícia descobriu o anexo secreto. Anne Frank, e a sua família, foram levados para a sede da Gestapo, onde foram interrogados e detidos durante a noite. No dia seguinte, foram transferidos para uma prisão superlotada na Weteringschans. Dois dias depois, foram de novo transportados para Westerbock, aparentemente um campo de trânsito por onde, por esta altura, já haviam passado mais de 100.000 judeus.
 
No dia 3 de Setembro, o grupo que incluia as duas famílias foi finalmente transferido para o campo da morte de Auschwitz-Birkenau. No momento da chegada, todas as crianças menores de 15 anos foram imediatamente para as câmaras de gás (Anne Frank havia cumprido os 15 anos três meses antes) e alguns membros do grupo seguiram por caminhos diferentes nunca mais se voltando a reencontrar. Anne ficou com a sua mãe e a sua irmã Margot.
 
Em Outubro de 1944, Anne Frank viria a conhecer a sua última morada: o campo para mulheres de Bergen-Belsen, para onde foi transportada com a sua irmã depois da morte da mãe Edith. Em Março de 1945 e pouco antes da libertação dos campos, uma epidemia de tifo atingiu, Margot primeiro e Anne depois. Ambas viriam a falecer, com um intervalo de dias, na primavera que traria todas as outras primaveras.
 
Otto Frank resistiu a Auschwitz e voltou a Amesterdão depois da guerra na expectativa, que jamais viria a concretizar-se, de reencontrar a sua família. Encontrou, no entanto, Miep Gies e Bep Voskuijl que após terem sido interrogados pela Gestapo em Agosto de 1944 voltaram ao anexo e recolheram os escritos, as memórias e algumas fotografias de Anne.
 
Em Julho de 1945, a Cruz Vermelha Internacional confirmou a Otto a morte das suas filhas e Miep Gies e Bep Voskuijl entregaram-lhe todas as recordações que Anne havia deixado. Otto Frank terá afirmado desconhecer esta faceta da sua filha: "Eu não tinha ideia da profundidade dos seus pensamentos e sentimentos ... Ela tinha guardado todos esses sentimentos para si mesma". Nesse momento decidiu que o mundo havia de conhecer a história da sua filha, morta muito precocemente pela loucura e pelo hediondismo nazi, e começou a organizar toda a informação. A primeira edição de 'O Diário de Anne Frank' data de 1947. Trata-se de uma obra ímpar que não espelha a tenra idade da sua autora, revelando, pelo contrário, a escrita madura e amargurada mas ao mesmo tempo viva de esperança.
 
O legado de Anne Frank está hoje muito para lá dos seus testemunhos: a 3 de Maio de 1957, um grupo de cidadãos, incluindo Otto Frank, estabeleceram o Anne Frank Stichting num esforço para resgatar o armazém e o anexo da demolição e torná-lo acessível ao público: a Casa de Anne Frank foi inaugurada a 3 de maio de 1960 e é hoje uma das principais atracções de Amesterdão. Em 1963, Otto Frank e a sua segunda esposa, Elfriede Geiringer-Markovits, criaram o Fundo Anne Frank como uma fundação sem fins lucrativos, com sede em Basileia, Suíça. O Fundo, que detêm os direitos da obra, arrecada dinheiro para doar para causas humanitárias, cívicas e sociais.
 
A história da vida interrompida de Anne Frank foi reeditada centenas de vezes, reproduzida em dezenas de peças de teatro e em vários filmes e deve ser algo que jamais deveremos esquecer: antes relembrar para evitar.